Em razão da tramitação do Inquérito Civil nº 1.12.000.000415/2023-10, o qual trata de uma denúncia autuada na Procuradoria da República no Amapá referente a concessão irregular de Autorização para Plano Técnico de Manejo Florestal (APAT) pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente (SEMA), o Ministério Publico Federal no Amapá (MPF/AP), promove nesta quinta-feira, dia 8, uma audiência pública na Escola Estadual Evilásio Pedro de Ferreira, localizada na BR 156, Vila Maracá, no Município de Mazagão.
O Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE) Maracá prevê a realização do manejo de 172 mil hectares de floresta de forma sustentável, mas a Procuradoria do federal afirma que os contratos firmados com as madeireiras não contaram com a participação da comunidade extrativista e descumprem o caráter comunitário do projeto.
O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) suspendeu a extração de madeira, por irregularidades na contratação de empresas para a realização do manejo sustentável. O órgão apontou falta de participação da comunidade e inexistência de uma ata de assembleia geral para aprovação do projeto.
O manejo madeireiro na área do assentamento está suspenso desde 5 de junho e, segundo o Incra, só será liberado mediante a comprovação da participação da comunidade e da apresentação de justificativas técnicas da sustentabilidade ambiental e social do projeto. A decisão seguiu parecer da Procuradoria Federal Especializada
Em março deste ano, a InfoAmazonia revelou as inconsistências no processo que autorizou o projeto de manejo no PAE Maracá, que foi concedido à Associação dos Trabalhadores Agroextrativistas do Maracá (ATEXMA) em setembro do ano passado, mesmo com pareceres contrários das áreas técnicas do Incra e da Secretaria de Estado do Meio Ambiente (Sema) do Amapá. Na época, o senador Davi Alcolumbre (União Brasil -AP) disse ter atuado diretamente na liberação do projeto.
“Com a articulação do nosso mandato conseguimos anuência do Incra para que isso se tornasse realidade”, escreveu o parlamentar em suas redes sociais.
No Incra, o projeto foi autorizado em maio de 2023 pelo então superintendente Fábio Muniz, um aliado político de Alcolumbre, ignorando os pareceres técnicos que apontavam “viés empresarial da atividade proposta, sem garantias da sustentabilidade econômica e social dos beneficiários do PAE Maracá”, o que contraria o caráter comunitário para projetos em assentamentos coletivos. A ATEXMA também tentou transferir a operação de manejo para terceiros, o que foi apontado como ilegal pelos técnicos.

As empresas envolvidas e o Bolsa Floresta
Até a suspensão, o projeto de manejo no Maracá vinha sendo realizado pela empresa TW Forest, que controlava toda a operação por meio de dois contratos assinados entre a ATEXMA e as empresas Eco Forte e Norte Serviços.
A TW já explora florestas públicas no Amapá desde 2016 e acumula uma série de infrações ambientais, incluindo desmatamento ilegal e comercialização de madeira sem documento de origem florestal (DOF).
Entre 2022 e 2023, a madereira foi multada seis vezes pelo Ibama. Publicamente, a TW Forest se apresenta como responsável pelo projeto em parceria com a Eco Forte, mesmo sem ser parte nos contratos com a ATEXMA.
A autorização de exploração florestal foi entregue à ATEXMA em setembro de 2023 pelo próprio governador Clécio, que anunciou o projeto como exemplo de “uso inteligente” da floresta, em evento que contou também com a presença do senador Randolfe Rodrigues (sem partido).
Líder quilombola é ameaçado: ‘não deveria estar vivo’
O PAE Maracá abriga 36 comunidades que vivem basicamente do extrativismo e da pequena agricultura, incluindo seis áreas ocupadas por famílias quilombolas. Moradores do assentamento ouvidos pela reportagem criticam o processo para escolha das empresas e alegam falta de transparência na gestão dos recursos gerados com o projeto.
Segundo o líder quilombola Jesus de Nazaré Videira da Trindade, as famílias não foram consultadas sobre o projeto madeireiro. “O que queríamos era discutir um projeto que fosse bom para toda a comunidade, mas qualquer um que se levante contra este projeto que está aí vira alvo”, diz o líder, que tem recebido ataques desde a suspensão do pagamento do Bolsa Floresta em consequência da decisão do Incra.
Trindade diz que o pagamento da bolsa se “tornou uma forma de cooptação das comunidades” e que tem gerado desunião. “Eles dizem que as famílias vão parar de receber o benefício por nossa culpa, mas a culpa é de quem não fez o processo da forma certa. Muitas pessoas assinaram documentos só para receber a bolsa, e eu entendo, mas algumas nem sabem o que assinaram. Não existe transparência nas ações da ATEXMA, eles chamam uma reunião e pedem para as pessoas assinarem papéis para receber o Bolsa Floresta”, afirmou.
Cerca de 980 famílias que vivem no assentamento não participam do programa e não recebem valores da venda da madeira porque não assinaram anuência para implantação do projeto. “Se é uma área coletiva, onde todos têm direito, não deveria haver essa divisão”, opina.
O morador compartilhou áudios com a reportagem que circulam em grupos de mensagens do Maracá, em que ele é apresentado como culpado por ter denunciado irregularidades do projeto para a imprensa: “Aquele seu Trindade, que não sei nem porque ainda está vivo”, diz um homem não identificado nas mensagens que circulam nos grupos, que continua: “não entendo nem porque ainda está na face da terra, porque se fosse lá no Pará ele já nem tava”.
De acordo com o InfoAmazonia, por suas declarações dadas à imprensa contra o projeto, o líder quilombola está sendo processado pelo governador Clécio Luís e pelas empresas Eco Forte e TW Forest pelos crimes de calúnia, injúria e difamação.
Quem também não assinou anuência para o projeto é o professor e vendedor de castanha Ezequias Rosa Vieira, que reclamou da falta de participação das comunidades na discussão do projeto:
“Não somos contra um projeto de manejo para comunidade, somos contra a maneira como ele foi implantado, se tornando uma forma de exploração ilegal de madeira na área do assentamento. Não existe transparência nos contratos, foram assinados sem ampla discussão na comunidade”, afirma o professor.
Vieira afirma que, se o projeto tivesse sido melhor discutido, poderia gerar mais ganhos para a comunidade. No entanto, da forma como foi implantado, está beneficiando apenas as empresas envolvidas e uma parte dos assentados. “Deveria ter ocorrido uma ampla concorrência para nós podermos vender nossa madeira pelo melhor preço e condições do mercado”, afirma.

Contratos já estavam assinados
O acordo assinado em janeiro de 2021 entre a ATEXMA e as empresas Eco Forte e Norte prevê a exploração e venda de R$ 401 milhões em toras da área do assentamento. No entanto, esse acordo já estava assinado quando foi apresentado à comunidade, em novembro daquele mesmo ano.
Segundo consta nos contratos assinados pela ATEXMA, a Eco Forte paga R$ 103 pelo metro cúbico de madeira retirada da área do assentamento, mas quase metade deste valor, R$ 50, fica com a Norte pelos serviços de corte e transporte da madeira. Os outros R$ 53 são destinados para a associação e distribuídos por meio do Bolsa Floresta.
A Norte está registrada em nome de Loane Marques Fernandes, esposa de Obed Lima Corrêa, gerente de licenciamento da TW Forest.
Segundo dados da Receita Federal, a Norte funciona no mesmo endereço da TW Forest, com o mesmo número de telefone e o mesmo email.
Repercussão
Em março deste ano, após a publicação de reportagens sobre as suspeitas de irregularidades no Maracá pela InfoAmazonia, pela Folha de S. Paulo e por jornais locais, o atual superintendente do Incra no Amapá, Gersuliano da Silva Pinto, anunciou uma comissão para reavaliar o projeto de manejo no Maracá.
Por meio de nota o senador Davi Alcolumbre se manifestou ao InfoAmazonia defendendo o “desenvolvimento sustentável na região” e afirmou que este é “o grande desafio, não só para nós, amazônidas, mas também para os brasileiros”.
O senador não informou qual foi a sua participação para a liberação do projeto junto ao Incra, como informou nas suas redes na época, mas afirmou que defende “a participação fundamental dos órgãos ambientais e de fiscalização para que cumpram seu papel técnico e adotem as medidas necessárias para impedir eventuais irregularidades com a sua punição nos rigores da lei”.